sábado, maio 14, 2005

Alô?

Estamos sujeitos a ser contactados em qualquer altura.

Não há escapatória possível.

A tecnologia, essa coisa amoral, pariu um objecto que não é neutro: o telémóvel, esse "Gadjet" que cometeu a proeza de gerar um impacto político, económico e ambiental na sociedade actual, sem que tenha havido sequer um debate prévio.

Como tudo o que é práctico, tornou-se popular. Criou mais uma necessidade social, já que é ela quem provoca a generalização. Actualmente, é-nos dito o que precisamos a toda a hora, a todo o instante.Que não faremos parte da inovação, do progresso emergente da civilização se não tivermos isto ou aquilo e mais um computador, um telemóvel ou outra engenhoca qualquer. É um apelo irresistível a “upgrade” constante de quem muito fala e pouco diz.

Hoje em dia, com um telemóvel no bolso, surge a necessidade compulsiva de o utilizar. De fazer chamadas que provavelmente não se fariam nem haveria necessidade de fazer.Na maioria dos casos, nada acrescentam á sua vida de cada um, mas fazem-se na mesma.

Ninguém organiza actualmente a sua vida social sem o indispensável aparelho.

É uma atitude impensável mas que facilmente se percebe.

As pessoas são fundamentalmente móveis.

Desde que se levantam de manhã até que se deitam á noite, estão constantemente em movimento. Durante anos, permaneceram estáticas, acorrentadas a secretária, fechadas em casa, foram obrigadas a estar paradas numa cabine pública para poderem falar.

Com telemóvel, toda esta dinâmica mudou.

Fala-se para e de todo o lado: do restaurante, do meio da rua, do transporte público, do cinema, do trânsito, da praia, do urinol.

Devia existir um código de cortesia para o telemóvel e uma entidade que regulasse o seu uso!

As pessoas perderam o valor da sua privacidade. E o mais bizarro ainda é ser obrigado a escutar o conteúdo das conversas dos outros: é abismal o nível de trivialidade do que se ouve.

A juntar a isto, o que dantes era essencialmente um telefone, transformou-se num objecto de diversão. Tiram-se fotografias, há ligações sem fios a computadores, há jogos. Já pouco ou nada tem a ver com a comunicação mas tudo a ver com entretenimento.

Há ainda a praga SMS e, pior, MMS.

É irónico como se deu baixa dos Beeper´s há uns anos para se perverter agora o intuito básico do telefone. Enviam-se incontáveis mensagens de texto que, encadeadas, dão ideia duma conversa. É algo estranho, distante, o modo como duas pessoas comunicam para quem observa o fenómeno há distância, com relutância ou simplesmente por não pertencer á faixa etária da moda. É quase como criar uma presença digital, em que, á semelhança da Net, se adquire uma coragem, um atrevimento ou uma identidade que nem sempre tem correspondência real .

As mensagens de texto pareçem desprovidas de grande carga emocional. Mas o facto é que as pessoas se excitam quando as recebem, sejam enviadas por quem já conheçem ou por quem pretendem vir a conheçer. Neste último caso, a sedução ganhou outro patamar. E também aqui são criadas as tradicionais rotinas de ansiedade e expectativa, que aumentam com uma fraca bateria e disparam se não houver um carregador á mão.

Durante muitos anos, comunicámos essencialmente através de contacto visual.

Parte dessa comunicação assentava na linguagem corporal, na forma como abanávamos a cabeça, como moviamos os olhos, como gesticulávamos. Há todo um histórico evolutivo centrado na comunicação cara-a-cara,olhos-nos-olhos.

No último século, essa comunicação foi sendo gradualmente retirada do seu ambiente natural e despejada para um cenário artificial. O telefone tornou-se uma parte íntima, não só da vida quotidiana, mas também da vida emocional. Deixou de fazer sentido ter uma relação, amar ou deixar de amar, estar com uma pessoa ou deixar de estar, sem pensar na mediação do telemóvel durante todo esse processo.

A ele, pede-se,sobretudo, que passe informação, que provoque a comunicabilidade. Dizem-se algumas trivialidades de ínicio, é certo, mas depois acaba por se engrenar.

Se estivermos juntos, o processo é diferente, é mais lento, mais imediato.

O telemóvel não é uma elemento passivo através do qual as relações se concretizam.

Tornou-se uma personagem participativa no desenrolar das relações.

Está lá no princípio, meio e fim.

É uma espécie de “menagé” moderna, invisível. Anda por lá, não se dá por ela e como não chateia, ignora-se.

A tecnologia tem-nos sido impingida nos últimos anos com afirmações exageradas sobre os benefícios que comporta. E, de forma passiva, e por vezes inconsciente, acabamos por a aceitar até que se torna uma parte intrínseca da nossa vida. Só então medimos as consequências e calculamos o embate que a tão apregoada melhoria proporciona. No caso do telemóvel, o legado é só um: já não há paz.

Já não há paz, nem calma e nem contentamento.

Já não há hipótese de pensar, de repensar ou sequer reflectir.

Tudo é imediato, rápido e feito ao momento.

"Fast" é a nova palavra de ordem.

De uma forma subtil e drástica, o telemóvel mudou também a forma como vivemos a solidão.

Somos a primeira geração que nunca poderá, para o bem ou para o mal, estar totalmente isolada e só, um facto que outras gerações celebravam mas também com o qual também sofriam. A capacidade de estarmos sós, se é algo a que damos valor, perdeu-se. Pelo contrário, se a detestamos,escapámos-lhe.

Há uma questão que importa não perder de vista: se existirem distrações constantes, se pudermos ser contactados a toda a hora, em qualquer lugar, se perdermos a capacidade de concentração regular, afinal que qualidade de interacção teremos com quem, realmente, precisa da nossa atenção?

Tal como em todas as revoluções, há um preço a pagar.

Para já, os aspectos positivos são a oportunidade de liberdade, de ligação e de segurança.Os contras são a distração, o tagarelar constante, a interrupção, a perturbação do espaço social, a invasão de privacidade e, quer queiramos quer não, a exposição da vida privada.

De futuro, dizem que será possível localizar pessoas via telemóvel. Hoje, podemos já podemos ver-nos em tempo real, via tecnologia 3G.

Apesar de não fazer questão de estar sempre contactável, nem de querer que saibam o que faço, onde estou ou qual o meu dia passo-a-passo, reconheço que o telemóvel pode ser especialmente útil em algumas situações, como em caso de desastre, calamidade ou simplesmente para que alguém perdido seja facilmente localizável.

Na sua ausência, porém, subsistem sempre métodos tradicionais, como o do Baden-Powell. Vantagens? Nunca falham e não requerem carregamento.

Certo, certo, é que as plataformas digitais constituem o próximo passo evolutivo nas comunicações.
A tecnonlogia Wireless é hoje o futuro porque a-de-fios se tornou obsoleta.

No caso do telemóvel, este tende a tornar-se uma espécie de agregado onde se incorporarão todas as outras tecnologias. Em breve, quem sabe, não daremos baixa dos tradicionais comandos de televisão porque se tornou possivel mudar de canal através do “telebicho”.

Enquanto isso, lá me vou perdendo e achando e comunicando á moda antiga. Até ver...

Não sou um resistente á mudança nem um fundamentalista "retro". Mas o ritmo a que a ficção se cola e incorpora a realidade dá que pensar. Aos nossos olhos, os tele-comunicadores de "Star Trek" são actualmente rísiveis e as profecias de Júlio Verne mais pareçem romances. O futuro descrito em "Blade Runner" não deverá andar muito longe...

Já temos telemóveis atrás da orelha. Um dia, tê-los-emos debaixo da pele. Bastará pensar num número, numa pessoa, numa localização digital e conseguiremos comunicar quase instintivamente. Será uma tecnologia incorporada, quase uma "tecno-telepatia" biológica. Cada um terá uma identidade digital á nascença e o indíviduo converter-se-á num ser númericamente identificável, á semelhança do que aconteçia, por exemplo, no filme "Gattaca", de Andrew Niccol, Na época,pura ficção.

Á cautela, á cautela, do telemóvel ao Chip e daí á aplicação massiva da nano-tecnologia, vai um instante.

É impossivel para o comboio da mudança e é impensável ser atropelado ou perder a viagem.

Há uma nova éspécie emergente e, conforme afirmava Darwin, apenas o mais forte sobrevive. "Survival of the fittest". "Adapt or die".

Por enquanto, disfrutem-se os prazeres moribundos da velha arte de comunicar ao momento. No agora.

De resto, por muito que se mude, o “número” é sempre o mesmo.

É ver para crêr.


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