quinta-feira, setembro 06, 2007
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"Passei os Verões todos da minha infância e adolescência nessa praia com o areal imenso. Agora regressei, década e meia depois, e o areal parecia mais acessível, embora nessa época certamente o percorresse em menos tempo. Não desci à praia desta vez. Não gosto, e além do mais tenho medo, por razões explicáveis e outras menos. Regressar aos locais "onde se foi feliz"? Uma espécie de felicidade, aceito. A felicidade da ignorância e da possibilidade, da simplicidade e da poesia que não respondia por esse nome. Em frente da varanda do meu quarto de hotel, as passadeiras extensas de madeira sustentando famílias em infalível fila indiana. Toalhas e mochilas, chapéus e lancheiras. Nada das multidões algarvias, felizmente, o Algarve onde nunca fui feliz embora tenha sido ignorante, uma praia de rosto humano, esta, como se dizia do socialismo, mas aqui sem ironia. Quase mais espanhóis do que portugueses, não me lembrava disto assim, um ou outro italiano e franceses de primeira geração, gente da Zona Centro, pais com filhas. As esplanadas frente ao mar iguais, como dantes, pacatas mesmo quando concorridas, sempre com famílias empiristas, gelados em cima, mariscos em baixo, os bancos de madeira frente ao Relógio onde podemos meditar melancólicos com o farol em fundo sobre o lado esquerdo. A placidez é a mesma de antigamente. Andei pelas ruas interiores, os prédios baixos, amarelo-torrado, muito desbotados pelo sol e pelo tempo, alguns degradados, mas já estavam assim, ou quase, há vinte anos. Já não sei quem escreveu que as memórias dos dias de nevoeiro se confundem com o nevoeiro das memórias. Havia uma espécie de nevoeiro emocional quando percorri as lojas discretas de artigos estivais, as farmácias concorridas, o mercado demasiado grande e tristemente vazio, o café da esquina onde eu jogava máquinas e que agora já não tem máquinas, os arcaicos e magníficos salões de jogos, agora fechados, como aquele, elegante e quase Riviera, ou aquele outro que tinha carrinhos de choque e tudo e que agora sei que se chama (chamava) Luna, porque as coisas ficam mas não os nomes. Eu lembro-me de uma Figueira da Foz agradavelmente provinciana, antes do "aggiornamento" cosmopolita (digamos assim), uma Figueira com pão (manteiga ou marmelada) e circo (Chen ou Cardinali). Andei à procura de uma comovente loja de brinquedos, onde comprei soldadinhos com Rommel e Montgomery. Não a encontrei, nem ao sítio, e dizem-me que nunca existiu. Há sítios totalmente mudados, prédios, quarteirões, mas outros sei que existiram no meu passado remoto e agora não se encontram e é como se nunca tivessem existido. Nas imediações do Casino, tudo na mesma. O mesmo café central e a casa Havanesa, e gente aos magotes nos restaurantes. Quando era miúdo não conheci estas ruas às duas da manhã. Não sei se estavam cheias e ruidosas; agora estão cheias e ruidosas. As raparigas têm a idade que eu tinha então (não vi mulheres de trinta anos), parecem menos tristes mas não mais felizes. Ando pela marginal junto da praia, sem nunca chegar a Buarcos (que está irreconhecível), ficando apenas pela minha pequena Riviera. Aqui aprendi tudo e não aconteceu nada. Uma espécie de pobreza sentimental, mas daquela pobreza que faz de tudo um luxo. E que vive esse luxo com espanto e gratidão. Sei que por mais que regresse não regresso nunca. Há momentos em que sinto um aguilhão no estômago como se fosse na consciência, uma nostalgia desolada, uma coisa tão sem fim como o areal pela praia dentro, em direcção ao oceano.
Num conto de John Updike, Lifeguard, um seminarista trabalha no Verão como salva-vidas. É um homem que se alegra com a alegria dos outros e se compadece das suas misérias. De cima da sua cadeira altíssima, ele vê a praia toda como uma parábola. E espera que venha uma onda mais forte, para que possa enfim salvar alguém."
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"A minha Riviera", crónica de Pedro Mexia a 25 de agosto de 2007 no Jornal "Público" .
Num conto de John Updike, Lifeguard, um seminarista trabalha no Verão como salva-vidas. É um homem que se alegra com a alegria dos outros e se compadece das suas misérias. De cima da sua cadeira altíssima, ele vê a praia toda como uma parábola. E espera que venha uma onda mais forte, para que possa enfim salvar alguém."
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"A minha Riviera", crónica de Pedro Mexia a 25 de agosto de 2007 no Jornal "Público" .
Comments:
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Pois é! A determinada altura queremos voltar para casa, mas já não está lá.
É nessa altura que nos apercebemos que temos que construir a "nossa casa" e enche-la com toda a bagagem que trazemos.
bjs
É nessa altura que nos apercebemos que temos que construir a "nossa casa" e enche-la com toda a bagagem que trazemos.
bjs
Por vezes, faltam os tijolos, apesar da bagagem estar lá toda.
Mas sim, a ideia é essa, seguir em frente. Sempre.
De resto, também não há muitos mais opções, não é verdade?
Um beijo.
Tks.
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Mas sim, a ideia é essa, seguir em frente. Sempre.
De resto, também não há muitos mais opções, não é verdade?
Um beijo.
Tks.
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